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OAB diz em parecer que Constituição não prevê Forças Armadas como ‘poder moderador’

COM G1 – A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou nesta terça-feira (2) um parecer para refutar a interpretação de que o artigo 142 da Constituição Federal permitiria uma “intervenção militar constitucional” para interferir na relação entre os poderes da República.

No último domingo, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro promoveram manifestação na qual defenderam intervenção militar e outras medidas inconstitucionais, como fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2018, durante o movimento de paralisação de caminhoneiros, grupos nas redes sociais defendiam uma “intervenção militar constitucional“.

Na reunião ministerial do último dia 22, o presidente Jair Bolsonaro também se referiu ao artigo 142 da Constituição: “Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”, afirmou na ocasião.

No documento divulgado nesta terça, a Ordem dos Advogados do Brasil rejeita a noção de que as Forças Armadas possam assumir uma função de “Poder Moderador“. A expressão, segundo a OAB, não faz parte da legislação brasileira desde a proclamação da República, em 1889.

Segundo o documento, como as Forças Armadas estão “inseridas inequivocamente na estrutura do Poder Executivo“, sob comando do presidente, qualquer interferência militar nos poderes Legislativo e Judiciário representaria uma ofensa à separação dos poderes, definida na Constituição de 1988.

Também está no texto constitucional a designação do Supremo Tribunal Federal (STF) como “guardião da Constituição”.

Por isso, segundo a OAB, não é possível dizer que algum trecho da Constituição confira “às Forças Armadas a atribuição de intervir nos conflitos entre os poderes em suposta defesa dos valores constitucionais”.

A entidade afirma que decidiu emitir o parecer por uma “obrigação legal e histórica de defender a democracia“.

“Há temas que a OAB possui obrigação legal e histórica de defender, como os direitos humanos, a democracia e as prerrogativas da advocacia. Em diversos momentos da história do Brasil, a OAB se manteve contrária à instituição do poder militar, afastando a soberania popular expressada no poder civil. Ao editar o presente parecer, a OAB mantém a sua tradicional linha histórica.”

O documento é assinado pelo presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, pelo presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, Marcus Vinicius Furtado Coelho, e pelo jurista Gustavo Binenbojm, da mesma comissão.

Crise política e interpretações
No parecer jurídico, a OAB afirma que decidiu se debruçar sobre o tema porque “figuras de grande projeção pública na imprensa” passaram a defender, recentemente, uma intervenção armada das Forças Armadas como um “poder moderador” nos conflitos entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
Nesse ponto, a Ordem dos Advogados cita artigos de Ives Gandra Martins Filho. O jurista chegou a ser citado pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro – o parlamentar sugeriu que as Forças Armadas coloquem “pano quente” no conflito entre os poderes para restabelecer o “jogo democrático”.

A Ordem dos Advogados do Brasil também cita que, na reunião ministerial de 22 de abril, o próprio presidente Jair Bolsonaro citou o artigo 142 da Constituição como uma “suposta autorização constitucional” para a intervenção das Forças Armadas.

A entidade rejeita todas essas interpretações, e diz que o tema “ganhou notoriedade após a onda de críticas mordazes, protestos violentos e movimentos criminosos contra o Supremo Tribunal Federal por parte de alguns círculos sociais exaltados“.

“Ao tratar da possibilidade de atuação das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem, a Constituição flexibiliza o comando que atribui ao Presidente autoridade suprema sobre as corporações militares. Não cabe às Forças Armadas agir de ofício, sem serem convocadas para esse fim”, diz o parecer.

De acordo com o texto, “também não comporta ao Chefe do Poder Executivo a primazia ou a exclusiva competência para realizar tal convocação. De modo expresso, a Constituição estabelece que a atuação das Forças Armadas na garantia da ordem interna está condicionada à iniciativa de qualquer dos poderes constituídos. A provocação dos poderes se faz necessária, e os chefes dos três poderes possuem igual envergadura constitucional para tanto”.

Por isso, segundo o parecer da OAB, “compreender que as Forças Armadas, inseridas inequivocamente na estrutura do Poder Executivo sob o comando do Presidente da República, poderiam intervir nos Poderes Legislativo e Judiciário para a preservação das competências constitucionais estaria em evidente incompatibilidade com o artigo 2º, da Constituição Federal, que dispõe sobre a separação dos poderes. Afinal, com isso, estabelecer-se-ia uma hierarquia implícita entre o Poder Executivo e os demais Poderes quando da existência de conflitos referentes a suas esferas de atribuições”.

A OAB argumenta que a interpretação questionada pelo parecer, a respeito do artigo 142, permitiria resultar em uma “absurda conclusão“, segundo a qual eventuais conflitos entre os poderes da República teriam de ser submetidos ao arbítrio do presidente.

“A interpretação aqui questionada autorizaria se chegar à absurda conclusão, em última análise, de que qualquer conflito entre os Poderes estaria submetido à autoridade suprema do Presidente da República, pois mediado pelas Forças Armadas, que desempenham suas atividades sob seu comando. E essa interpretação, ao estabelecer hierarquia entre os Poderes, traria importantes e graves riscos para o princípio da supremacia constitucional.”

A OAB também destaca que o artigo 102 da Constituição diz que compete ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição“.

“Isso significa que ao Poder Judiciário e, ao fim e ao cabo, ao Supremo Tribunal Federal, cabe interpretar o Texto Constitucional, por meio dos mecanismos institucionais que a própria Lei Fundamental estabeleceu. Tendo sido esta a disciplina traçada pelo constituinte, inviável a tese da autoridade suprema do Chefe do Poder Executivo e, por maior razão, das Forças Armadas”, afirma a OAB.

Poder Moderador no Império
Para rejeitar a ideia de um novo “Poder Moderador“, a OAB resgatou no parecer o sentido histórico da expressão. Segundo a entidade, esse termo só foi incluído textualmente na Constituição do Império de 1824, quando o Poder Moderador cabia ao imperador Dom Pedro I.

A ideia era ligada a um “poder neutro incumbido de assegurar o equilíbrio e a harmonia entre os demais poderes”, explica a OAB. Os poderes do imperador incluíam, à época, dissolver a Câmara dos Deputados e suspender magistrados.

O Poder Moderador, entretanto, foi extinto com a proclamação da República em 1889 e a promulgação da Constituição em 1891, “adotando-se a fórmula da tripartição de poderes, ‘harmônicos e independentes entre si’, todos obedientes à Constituição”. A partir daí, explica o parecer da OAB, o Poder Moderador foi substituído por mecanismos de controle de constitucionalidade previstos na própria Constituição, com freios e contrapesos para evitar abusos.

“Em nenhum desses mecanismos é dado às Forças Armadas atuar como uma instância decisória suprema localizada acima dos demais poderes, ou seja, como uma espécie de Poder Moderador. Ao contrário, como muito bem exposto por Seabra Fagundes, com apoio no pensamento de Rui Barbosa, as Forças Armadas estão integradas e vinculadas ao comando do seu chefe supremo, o Presidente da República, que, por sua vez, tem o dever de respeito às leis e à própria Constituição“, define a OAB.

O que diz a Constituição?
O artigo 142 da Constituição Federal, citado por Bolsonaro, afirma:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

O texto é interpretado pelos defensores da intervenção militar, diz a OAB, como uma garantia de que as Forças Armadas poderiam agir em defesa da normalidade constitucional, ou para “repor a lei e a ordem”.

A Ordem dos Advogados do Brasil declara, no parecer, que “tais argumentos não têm qualquer cabimento ou sustentação jurídica”. E para isso se baseia em dois princípios: a separação dos poderes e a inexistência de um poder “moderador” na República brasileira.

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