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Afeganistão assolado pela fome, parte da culpa é do Ocidente

Por Matthias Von Hein, Deutsche Welle – 

“O Inferno na Terra”, é como David Beasley, diretor executivo do Programa Alimentar Mundial (WFP) das Nações Unidas, descrevia a situação no Afeganistão no fim de 2021. Desde que o Talibã assumiu o poder em agosto, os tiroteios, bombas e combates cederam. No entanto, o think tank International Crisis Group, sediado em Bruxelas, teme que “fome e carestia em seguida à tomada pelo Talibã possam matar mais afegãos do que as bombas e balas das duas últimas décadas”.

Nora Hassanien, diretora para o Afeganistão da organização humanitária Save the Children, contou à DW sobre “famílias desesperadas” recorrendo a estratégias de sobrevivência cada vez mais “extremas e danosas”, entre as quais “vender os próprios filhos, e outras coisas que, de outra maneira, elas nunca fariam”.

As estatísticas são tão dramáticas quanto as histórias individuais por trás delas: segundo o WFP, cerca de 20 milhões, a metade da população, precisam urgentemente de assistência alimentar. Contudo, não há dinheiro suficiente, frisa a diretora da organização no país, Mary-Ellen McGroarty.

Numa conferência online em julho, ela relatou que as resoluções de a quem dar comida se baseiam na atual situação nutricional do indivíduo ou sua vulnerabilidade particular: trata-se de um processo de tomada de decisão “extremamente difícil e muitas vezes de cortar o coração”.

Crises encadeadas no Afeganistão
Samira Sayed Rahman, da organização Comitê Internacional de Resgate (IRC, na sigla em inglês), relata que também o setor de saúde afegão está em colapso. Durante uma visita a um hospital na província de Paktia, no sul do país, ela constatou que não há suficientes médicos, nem enfermeiros.

“Os médicos com que falamos não haviam recebido salário nos últimos seis meses. As enfermarias estão cheias de mulheres com crianças subnutridas no colo. Na unidade neonatal, três bebês tinham que compartilhar uma incubadeira.”

Os afegãos vêm se debatendo com crises em série. Além da devastação resultante de décadas de guerra e uma desvalorização brutal de sua moeda, há três anos a mudança climática provoca secas em vastas áreas, em outras causou inundações ou neve fora de época, em meados de junho; e em 2022 o país sofreu mais um grande terremoto.

Contudo o maior desafio, segundo Rahman, é a suspensão dos pagamentos do exterior. Durante 20 anos o Ocidente esteve profundamente envolvido no Afeganistão, nos aspectos militar, político e da cooperação para o desenvolvimento. Uma abundância de projetos de infraestrutura resultou na construção e manutenção de estradas, escolas e hospitais. Depois que o Talibã assumiu o poder, contudo, o fluxo de verbas foi suspenso da noite para o dia.

“Há cerca de 400 mil desempregados no setor público, mais 200 mil no de segurança”, informa Rahman, do IRC. “Muitos desses empregos desapareceram, o nível de desocupação é o mais alto que já houve, assim como o da inflação.”

Sanções contribuem para o caos
Os talibãs eram os interlocutores dos Estados Unidos nos diálogos de paz que logo se transformaram em negociações de retirada. Contudo o governo que eles formaram está isolado e não é reconhecido internacionalmente, o que resultou na interrupção do fluxo de verbas. Além disso, sanções visando terroristas islâmicos estão agora também afetando o aparato governamental liderado pelo talibã e, portanto, todo o país.

O diretor da ONG Human Rights Watch, Kenneth Roth, aponta que o ajuda não basta sem um sistema bancário funcional que não esteja constrangido por sanções. Há dois tipos delas: as Nações Unidas e a União Europeia impuseram medidas contra talibãs específicos, inclusive membros do “governo de fato”, na terminologia do Ministério alemão do Exterior.

Além disso, a partir de 1999 os Estados Unidos decretaram sanções unilateralmente, listando o Talibã como “organização terrorista global especialmente designada” (SGDT). A meta dessas medidas punitivas é isolar economicamente o Afeganistão, explica Conrad Schetter do Centro Internacional de Estudos sobre Conflitos de Bonn (Bicc).

“Todas as oportunidades econômicas estão sendo amputadas, tudo além da ajuda humanitária foi suspenso, todos os projetos de desenvolvimento”. Assim, o Afeganistão foi completamente desacoplado dos mercados econômicos e financeiros, e “os afegãos foram catapultados de volta à economia de subsistência”, resume o especialista em conflitos.

Outro fator determinante foi a decisão de Washington de congelar os ativos do banco central do país, totalizando cerca de 7, 2 bilhões de dólares, e de reter a metade da quantia como possível compensação para as vítimas dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.

Trata-se de um passo legalmente questionável, ressalva a relatora especial da ONU para medidas coercivas unilaterais, Alena Douhan, pois, “da perspectiva do direito internacional, o capital de um banco central não pertence ao governo, mas sim ao país”.

Sem acesso a suas reservas internacionais, é muito limitado o papel que o banco central afegão possa representar na economia nacional. As sanções e a falta de moeda estrangeira tornam quase impossível realizar transferências para o país.

Teoricamente autorizações especiais podem ser empregadas para fins humanitários; na prática, porém, elas são muito difíceis de se obter. Isso também se aplica à ajuda alemã para o país asiático. Um porta-voz do Ministério de Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ) descreve o “setor bancário não operacional, que torna difícil sequer fazer dinheiro chegar ao Afeganistão”, como “um grande desafio para a implementação dos planos”.

Entre hawala e o fim do isolamento
Assim, os grupos humanitários têm que adotar métodos anticonvencionais. Elke Gottschalk, diretora regional para a Ásia da organização humanitária alemã Welthungerhilfe, conta que as remessas financeiras precisam ser processadas por canais alternativos, as assim chamadas “redes hawala” (“transferência” ou “confiança” em árabe).

A ONG transfere a quantia para a conta do mediador, o hawaladar, num terceiro país e “esse agente assegura que o dinheiro chegue a Cabul, em espécie”, explica Gottschalk. “Nós o contamos, e ele pode ser usado.”

O IRC igualmente depende do sistema hawala, confirma Samira Sayed Rahman. No entanto, não se trata de “um método confiável, nem sustentável”. No tocante à catástrofe alimentar afegã, ela está convencida: “Esta crise é de fabricação humana, foi causada pela comunidade internacional”.

Nora Hassanien, da Save the Children, compartilha a avaliação, acrescentando: “Nenhum volume de ajuda humanitária vai realmente resolver o problema aqui. Ele precisa de uma solução em âmbito maior”.

Esse é também o ponto de vista do think tank International Crisis Group (ICG). Em junho, após uma visita a Cabul, seu especialista em assuntos afegãos, Graeme Smith, escreveu: “Recuar do precipício de um desastre mais profundo exigirá dar fim ao isolamento do país, atrair ajuda ao desenvolvimento e persuadir o Ocidente e os governos regionais a ajudarem na recuperação econômica.”

Permanece o dilema de que tal só é possível colaborando-se com um regime que viola em massa os direitos humanos, especialmente os das minorias, mulheres e meninas. No Fórum Econômico Mundial de Davos, em maio, o administrador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Achim Steiner, explicitou sua posição: “Não podemos abandonar 40 milhões de afegãos simplesmente pelo princípio da indignação moral.”

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